Pedagogia Nagô

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Por Cris Capuano

Nascidas em terreiros de candomblé, duas escolas-modelo rompem as barreiras do preconceito, sob as bênçãos dos deuses africanos, elas contam e fazem história para transformar a realidade de meninos negros de Salvador.

Na porta da escola municipal Eugenia Anna dos Santos, no bairro de São Gonçalo, periferia da cidade de Salvador, Iara Braga trata logo de se apresentar: “Meu nome quer dizer mãe das águas. Tem um bocado delas lá no barracão”. Há três anos, Iara estuda no Ile Axé Opô Afonjá, um dos primeiros terreiros de candomblé da Bahia, fundado em 1910. Nos últimos tempos, Iara anda mais interessada em uma galinha-d’angola, que na África recebe o nome de conquem.
 “No início do mundo, tinha todos os bichos. Só a conquem que vivia ciscando e olhando só para o que fazia. Passava o dia todo reclamando: ‘Tô fraca! Tô fraca! ’. Um dia, ela mesma viu que precisava mudar. Então, procurou Oluow”, conta a menina, não sem antes acrescentar que Oluow é um sábio conselheiro africano. O colega Raí de Assis logo se mete na conversa: “O Oluow falou para a conquem que o problema era o jeito que ela tratava os outros. Aí a ensinou a dizer palavras mágicas”, instiga. Palavras mágicas?
“A conquem viu a cajazeira e deu bom dia: ‘Kuawró’! E ela respondeu: ‘Kuawró ô!’”, interrompe uma menina de tranças coloridas. “Depois viu dois passarinhos e pediu licença: ‘Ago’! E eles deram passagem, dizendo ‘Ago yá’”, retoma a história Iara, apontando para a frase colada na parede. Contar e vivenciar histórias iorubanas faz parte do currículo das 350 crianças alfabetizadas na escola de Maria Stella de Azevedo Santos, uma das mais respeitadas iyalorixás da Bahia.
Nascida informalmente na década de 70 como uma creche, a escola é hoje a maior referência na aplicação de uma disciplina que, em 2003, virou lei: o ensino da cultura africana. Isso em condições adversas: segundo estatísticas do Ministério da Educação (MEC), a Bahia está na última posição do ranking de educação, em um país que despencou para a 94ª posição da lista mundial. “Não trabalhamos com candomblé, mas com a busca das raízes africanas, sua valorização e respeito”, tenta explicar a vice-diretora da escola, Iraildes Santos Nascimento. “Existe uma tendência, até por parte dos educadores, de associar a cultura africana só à religiosidade”, afirma Ana Paula Gonçalves da Silva, uma das dezesseis pedagogas que dissertaram teses sobre o projeto pedagógico da escola Eugenia Anna, chamado Ire Ayó (caminho da alegria, em iorubá).
Baseada na leitura e vivência de mitos africanos, esse método de ensino nagô tem à frente a historiadora Vanda Machado, doutora em educação e pesquisadora há 33 anos da cultura africana. As histórias são adaptadas de suas memórias de infância, vivida em um engenho de açúcar no Recôncavo, e do que ela costuma chamar de “arquivo vivo do Opô Afonjá”. “No terreiro de candomblé, o comportamento das pessoas da comunidade também é ditado por esses mitos, con­­tados pelos mais velhos para orientar nossas diretrizes”, compartilha.

Black Power

Na Liberdade, bairro com 80% de moradores afrodescendentes, outra escola é exemplo no ensino do poder negro. Na quarta-feira, os alunos da escola Mãe Hilda, instalada na sede do Ilê Aiyê, no Curuzu, saem de suas salas de aula para visitar a “roça”. É no terreiro de Hilda Dias dos Santos, mentora espiritual do grupo afro, que eles aprendem a agir contra o racismo e fortalecer a autoestima. “Agressão, a gente responde com filosofia”, ensina a matriarca de 84 anos. Sexta-feira, em compensação, é dia de homenagear Oxalá, e substituir a camiseta amarela do uniforme por outra, toda branca. Um dos diferenciais do Ilê é o uso de cadernos pedagógicos produzidos pela instituição. Para Hildelice Benta dos Santos, filha de Mãe Hilda e diretora da escola, a maior dificuldade está no mate­rial didático. “Lendo histórias da Branca de Neve, nossas crianças ficam presas no mundo estético dos brancos”, lamenta. O Ilê Aiyê, não é o único a se preocupar com a educação. No último ano, quem abriga uma escola municipal de ensino – e faz bonito na aplicação da lei 10.639 – é o Malê Debalê, em Itapuã.
Na escola Eugenia Anna, as histórias míticas falam de outras princesas, além de folhas mágicas e animais falantes. Para Vanda Machado, essa é a melhor forma de aproximar as crianças de suas raízes africanas e fazer com que elas mesmas reconstruam, com os valores ancestrais de companheirismo, respeito e solidariedade, sua personalidade. São as “pistas para as potencialidades espirituais da vida humana”, que, já na década de 90, citava Joseph Campbell (O Poder do Mito, ed. Palas Athenas). Nada tão complicado.
“Continuamos vivendo os valores da cultura negra em todos os seus aspectos”, acredita a educadora, que já orientou dezesseis teses de mestrado sobre o seu jeito de ensinar. “Minha função, como educadora, é só fazer com que as pessoas lembrem disso e consigam despertar.” Despertar inclusive para chacoalhar o preconceito contra uma das culturas fundadoras da brasilidade. No livro de Vanda, um trecho ilustra o preconceito à religião: “Na década de 70, a Federação Baiana de Cultos Afro-brasileiros e o juizado de menores proibiram a permanência de crianças no barracão durante festas públicas”. Mãe Stella foi a primeira a levantar a voz contra essa arbitrariedade, em entrevista ao Jornal da Bahia, em 1977: “Se em toda religião as famílias encaminham os filhos para sua crença, por que a proibição no candomblé?”.
No barracão, a pequena Iara agora imita sua heroína, contando empolgada o final da transformação da conquem. Tem o corpo todo pintado de bolinhas brancas. “O velho pintou com o pó mágico, porque a conquem o tratou bem”, conclui Iara. Mas uma vez, ela parece não se importar com o nome do velhinho (nos livros de Vanda Machado, pode ser que descubra que ele é Oxalá, o orixá mais velho e respeitado no panteão africano). A conclusão de Mãe Stella, em sua inabalável postura de rainha, é tão simples quanto a de Iara, ou tão pontual quanto as boli­nh­as brancas da ave predileta desse deus iorubá: “Querendo, todo ser humano pode se transformar”.



Na escola Eugenia Anna, é dia de festa. As crianças representam, 
para os pais, o que aprenderam com um mito africano: companheirismo,
iorubá e cultura ancestral; na foto da direita, Mãe Stella.


Fotos/Márcio Lima
Fonte: http://revistatrip.uol.com.br/157/candomble/home.htm

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