Escola precisa adotar ações eficientes para diminuir a desigualdade entre brancos e negros

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Alexandre Pavan

O dantesco navio negreiro descrito por Castro Alves afundou em 13 de maio de 1888, quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea. O ato simbólico, no entanto, não impediu que a herança de mais de 300 anos de escravidão continuasse ancorada na sociedade brasileira e se abalroasse com o século XXI. Mais de cem anos após a Abolição da Escravatura, os negros brasileiros continuam atracados na luta por ascensão social e melhores condições de vida. Nesse mar de desigualdades, a escola deveria ser um porto seguro para a nau da tolerância e fraternidade. Mas tanto nas salas de aula quanto no mercado de trabalho, um oceano de ignorância e injustiça separa brancos e negros no Brasil. Hoje, a prova disso não está nas chibatas, mas nos números, que também estalam.

De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2% do corpo discente das universidades brasileiras - públicas ou privadas - é formado por estudantes negros. Segundo estudo baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 1999, a taxa de analfabetismo é três vezes maior entre negros. E mais: jovens brancos, aos 25 anos, têm, em média, 8,4 anos de estudos, quando negros da mesma idade têm a média de 6,1 anos. Pelo IBGE, 5,4% dos brasileiros declaram-se pretos e 39,9%, pardos. A população negra, que inclui pretos e pardos, corresponde a 45,3% no Brasil.

No ensino fundamental, o que as pesquisas revelam também é um açoite. Os números se referem à "taxa de escolaridade líquida", indicando, numa determinada faixa etária, a quantidade de estudantes matriculados no nível escolar adequado. De acordo com o Ipea, entre os 25% mais pobres do país, 44% dos brancos entre 11 e 14 anos estão entre a quinta e oitava séries do ensino fundamental. Na população negra, o índice é ainda mais baixo: 27%.

As histórias que ilustram tais números vêm carregadas com a cor do preconceito. Rode Damaris da Silva, de 17 anos, ainda se lembra de como a discriminação marcou sua infância na escola. "Minha mãe costumava fazer trancinhas no meu cabelo. Quando chegava na escola, os outros alunos diziam que eu tinha 'caminhos de rato' na cabeça. Eu tinha medo de reclamar, me afastava dos professores. Ficava no meu canto e tentava ser uma boa aluna", recorda.

Filha de mãe doméstica e pai vendedor Rode conta um episódio ocorrido com seu irmão: "Ele estava conversando durante uma aula e a professora gritou: 'Fica quieto, neguinho’. Como ela era meio gordinha, meu irmão respondeu: 'Fica quieta você, sua gorda'." O caso foi parar na diretoria e o pai do aluno foi chamado na escola - onde só lhe contaram parte da discussão. Repreendendo o filho, perguntou por que tinha xingado a professora. O menino contou como tinha sido ofendido primeiro. "Aí meu pai botou a boca no trombone", lembra Rode.

Iniciativa - Há três anos a jovem frequenta o projeto Geração XXI, uma ação afirmativa fruto da parceria entre a ONG Geledés - Instituto da Mulher Negra, Fundação BankBoston e Fundação Cultural Palmares. Participam 21 adolescentes negros, com idade inicial entre 13 e 15 anos, integrantes de famílias com renda per capita entre um e dois salários mínimos, residentes na cidade de São Paulo. Eles têm seus estudos custeados da oitava série do ensino fundamental ao término da graduação universitária. Fora do horário de aulas, esses jovens frequentam a sede do projeto, onde aprendem inglês, tiram dúvidas do que aprenderam no colégio e realizam atividades que os fazem se identificar com sua raça. O Geração XXI ainda agrega um outro programa, destinado a fornecer orientação e apoio às famílias dos jovens.

Engana-se, e muito, quem pensa que a jovem Rode teve seus problemas de discriminação solucionados só porque, apoiada pelo projeto, começou a frequentar escolas particulares. A situação só mudou porque aprendeu a se defender. "Hoje, eu não sei mais ficar quieta. Não parto para a ignorância, mas exijo respeito", diz. Num dos primeiros dias na escola particular, Rode e outras amigas negras, assim que passaram pelo portão, ouviram o seguinte comentário de um grupo de alunas brancas: "Nossa, abriram as portas da África.”.

- O que vocês disseram? - retrucou uma das jovens negras.
- Nada, nada... - se intimidaram as agressoras.

Gustavo Martins da Silva, 18 anos, colega de Rode na Geração XXI, explica que nem sempre as atitudes racistas são diretas e o preconceito, evidente: "São situações ocultas, sempre paira a dúvida. As pessoas ficam te olhando, fazem comentários entre elas e você não sabe o porquê daquilo.”.

As primeiras semanas de aula no colégio particular foram assim: "Vinha um, puxava assunto e saía. Depois outro, que fazia outras perguntas e ia embora. Parecia que tentavam entender o que eu estava fazendo lá. Deviam pensar 'esse cara não tem dinheiro, será um bolsista ou o que? '", recorda Gustavo. Outros se aproximavam pronunciando gírias e puxando conversas descabidas, como quem diz "eu sei qual é a sua":

- Você mora aonde?
- Em Itaquera.
- Pô, eu frequento favela, Capão Redondo, vou lá comprar baseado. Mó legal...
- Itaquera não é favela. E eu não curto maconha.

Para o movimento negro, sociólogos e outros especialistas, histórias como as de Rode e Gustavo servem para confirmar sua avaliação de que a escola brasileira - pública ou privada - ainda não está preparada para lidar com a diversidade de raças, etnias ou gêneros.

Maria Aparecida da Silva, a Cidinha, presidente da ONG Geledés e coordenadora do projeto Geração XXI, acredita que o papel do professor é fundamental para que haja mudanças. "Os educadores precisam compreender a particularidade da condição racial dos alunos e assim dar um passo rumo à promoção da igualdade. A exclusão escolar é o início da exclusão social das crianças negras. O corpo docente, via de regra, não vê as graves diferenças existentes nos resultados escolares de crianças negras e brancas, não estabelece relações entre pertencimento racial, étnico ou gênero e desempenho escolar, e ainda não percebe como isso interfere na sua própria conduta", avalia.

É a falta de preparo dos professores, segundo Eliane Cavalleiro, autora do livro Do Silêncio do Lar ao Silêncio Escolar: Racismo, Preconceito e Discriminação Racial na Educação Infantil, que contribui para o alto índice de evasão escolar de alunos negros. "Isso acontece porque eles não estão sendo positivamente aceitos. Eles não recebem o mesmo tratamento desde o currículo - que não pensa de fato numa formação histórica do Brasil com a participação da população negra - até as falas pejorativas que ocorrem frequentemente", argumenta.

O resultado é que muitos acabam introjetando a rejeição e passam a crer que realmente são inferiores. "Crianças estão sempre tentando se fazer percebidas por todos dentro da escola. Porém, as negras são rejeitadas nas brincadeiras, não conseguem formar pares nas festas e não recebem o mesmo carinho que as brancas da professora", protesta Eliane. "Com isso elas ficam mais retraídas, porque sabem que a qualquer momento podem ser ofendidas, com alguém destacando suas características de negritude de forma negativa. A criança prefere ficar à parte para evitar o conflito, os xingamentos", completa.

Kabengele Munanga, professor titular do Departamento de Antropologia da USP, concorda com Eliane: "Um negro que disser que nunca foi direta ou indiretamente discriminado é um mentiroso. A não ser que tenha introjetado tanto a discriminação que não perceba mais a sutileza."

Alexandre Magno Silva, 17 anos, aluno da segunda série do ensino médio da Escola Estadual Albino César, no Tucuruvi, zona norte de São Paulo, afirma nunca ter sofrido nenhum tipo de discriminação - dentro ou fora da escola - por ser negro. "O que existe são as brincadeiras dos amigos, mas isso não me incomoda", diz. Mas é Tiago de Moraes, estudante do primeiro ano do ensino médio da Escola Municipal Rubens Paiva, em Sapopemba, zona leste de São Paulo, quem explica melhor qual é o "limite suportável" das brincadeiras. "Meus amigos me chamam de 'negão', e eu levo na boa. O que não aguento é quando estou andando na rua e alguém fica me tirando, dizendo 'olha só o neguinho, o macaco'". Para ele, devido ao preconceito e à dificuldade que os negros têm para ascender socialmente, a discriminação se inverte. "Tenho amigos que, às vezes, evitam sair com brancos. Talvez pensem que seja uma forma de reverter a situação. Mas eu não acredito nisso, pois somos todos iguais", comenta.

Preconceito - Tiago também afirma que nunca foi discriminado na sala de aula: "Pelo menos nunca me senti sendo tratado diferente pelo professor por causa da minha cor." Ouvindo as histórias dos amigos, Hayla Garcia, 14 anos, branca, diz não ter nenhum preconceito de cor. Conta que seus colegas mais próximos são negros e enfrenta olhares de reprovação por causa das amizades. "Às vezes, até meus pais julgam as pessoas com quem ando pela aparência e fazem comentários pejorativos, em tom de brincadeira, a respeito da cor dos meus amigos. Eu chego a chorar."

Tentando contribuir para a melhor formação de professores, o Núcleo de Estudos Negros (NEN), de Florianópolis (SC), tem um programa de educação dedicado à produção de material didático-pedagógico, como jornais e livros. As publicações são distribuídas nas escolas da rede municipal por meio de uma parceria com a Prefeitura. "O professor é o grande fomentador das transformações dentro da sala de aula, ele é quem faz a intermediação entre escola e sociedade. É preciso que os governos forneçam instrumentos para que o professor possa discutir a diversidade estabelecendo estratégias de mudanças", sugere Ivan Costa Lima, coordenador do NEN.

E como lidar com a multirracialidade nas escolas particulares, se ali o número de estudantes negros é praticamente zero? "Na educação pública ou privada, o professor não deve esperar que surja uma situação racista, discriminatória, para tratar do assunto. No currículo, no planejamento ou em algum projeto é preciso prever essa discussão", responde Eliane. De acordo com a educadora, nas escolas particulares, embora haja poucos negros, os alunos precisam ter consciência de que estão numa sociedade que tem relações raciais desiguais. "Numa educação crítica, você deveria pautar seu currículo para questionar essa desigualdade", afirma.

Essa é a promessa de Ana Maria de Lima Falqueiro, diretora pedagógica da Escola Internacional de Alphaville, região da Grande São Paulo, instituição de ensino bilíngue e de alto padrão. Entre seus 400 alunos, cujos pais pagam, em média, R$ 830 de mensalidade, não há nenhum negro. "Não termos, neste momento, crianças negras estudando é circunstancial, porque já tivemos. A ausência delas não interfere em nossa proposta de trabalho, que é formar cidadãos conscientes da pluralidade do mundo", defende Ana Maria.

Se não há negros matriculados, há educadores lecionando, como a professora de inglês Marli Silva Raymundo. Mesmo com alunos tão pequenos, de educação infantil, ela diz que é fácil introduzi-los no problema racial. "São crianças que têm muito acesso à informação em vídeos, livros e, além do mais, suas babás e motoristas geralmente são negros. Eles convivem com a diferença", aponta. Apesar disso, frequentemente ela se depara com a pergunta: "Professora, por que você é dessa cor?" Marli acredita que esclarecer as dúvidas raciais de crianças dessa faixa etária seja mais tranquilo. "Elas são novas e não vêm carregando o preconceito que muitas vezes se aprende em casa."

O pensamento anti-racista nunca esteve tão em evidência. "Estamos num momento importante, em que a sociedade civil discute mais o tema. Se existe a desigualdade racial, comprovada não apenas no discurso do movimento negro, mas também pelos institutos de pesquisa, é fundamental que haja ações políticas", opina Ivan Lima.

Empresas privadas, multinacionais principalmente, começaram a incentivar programas de promoção da diversidade, a exemplo da Xerox, da Levi's e do BankBoston. Na seara pública, a primeira semente germinou no Ministério do Desenvolvimento Agrário. Há um ano, todas as empresas que prestam serviço ao órgão são obrigadas a apresentar 20% de seus quadros ocupados por negros ou pardos. A mesma regra vale para os cargos de confiança da pasta.

No Ministério da Justiça, a política abrange também mulheres e deficientes físicos. E, no início do ano, Marco Aurélio de Mello, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), definiu que, dos 20 novos contratados para o setor de comunicação do tribunal, quatro deveriam ser negros. A outra novidade envolve o Instituto Rio Branco, escola de formação de diplomatas brasileiros. Em 2002, 20 alunos negros receberam bolsas de estudo para poder se preparar melhor para as provas.

Identidade - No esteio das ações, em março último, veio a nomeação da professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva para ocupar uma vaga no Conselho Nacional de Educação (CNE). Tornou-se a primeira negra a assumir o cargo. Na época, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, declarou que o racismo expulsa a criança negra da escola. "A questão racial não é exclusiva dos negros. Ela é da população brasileira. Não adianta apoiar e fortalecer a identidade das crianças negras se a branca não repensar suas posições. Ninguém diz para o filho que ele deve discriminar o negro, mas a forma como se trata o empregado, as piadas, os ditados e outros gestos influem na educação", disse Petronilha.

Outra das 24 cadeiras do CNE também foi ocupada de forma inédita pela representante indígena Francisca Novantino Pinto de Ângelo. Essas indicações foram uma promessa do ministro da Educação, Paulo Renato Souza. Ele discute agora a possibilidade da adoção de cotas nas universidades, um assunto polêmico (leia mais à página 52). É a favor da medida, mas confessa que não resolve totalmente o problema da desigualdade.

Na Câmara dos Deputados tramita outra proposta que envolve vagas de reserva. O Estatuto da Igualdade Racial, de autoria do deputado Paulo Paim (PT), se aprovado, estabeleceria cotas para negros em programas de TV, publicidade e universidades.

O sociólogo e professor Octavio Ianni não se anima muito com as tais cotas. Segundo ele, ao mesmo tempo em que representam uma conquista social, elas vêm no esteio do preconceito. "Por que não dar condições econômicas para os negros para que eles se movimentem na sociedade?", questiona.

Para Ianni, medidas como essa servem apenas para reiterar a tese da "democracia racial". E esse pensamento, de acordo com o sociólogo, é uma das maiores "atrocidades" deste país. "O eufemismo é tão grande que, quando se diz isso, os negros, índios e outros grupos acham que não podem reclamar de sua situação porque estariam indo contra a democracia. Aquele artigo da Constituição Brasileira, e de todas as constituições liberais, de que todos são iguais perante a lei, não importando a cor, religião etc., revela um grande cinismo da sociedade judaico-cristã", critica.

Ele acredita que "a fábrica da sociedade" promove a desigualdade, e não o contrário, pois é dessa forma que as elites permanecem no poder. "Quando se questiona a desigualdade, se questiona a estrutura social", ensina. E conclui: "O preconceito é uma técnica de dominação. Quando se define que o outro é inferior, metade da guerra está ganha. A nossa sociedade é injusta e cruel".

As ações afirmativas - sejam ou não em forma de cotas - são imprescindíveis. O racismo e a pobreza se acentuam, como os números e as histórias comprovam. Sem mudanças, o auriverde pendão dessa terra continuará servindo de mortalha.

À moda brasileira

Nascido na República Democrática do Congo, antigo Zaire, Kabengele Munanga, professor titular do Departamento de Antropologia da USP, mora no Brasil há 27 anos. Organizador do livro Superando o Racismo na Escola (MEC/1999), ele comenta que o racismo no país é evidente. "Um negro que disser que nunca foi direta ou indiretamente discriminado é um mentiroso. A não ser que tenha introjetado tanto a discriminação que não perceba mais a sutileza", afirma.

Educação - Por que os números que indicam a desigualdade racial entre brancos e negros, em vez de diminuírem com o passar dos anos, permanecem os mesmos ou aumentam?

Kabengele Munanga - Isso é consequência de nossa situação social, cuja característica são os vários tipos de exclusões, uma delas racial. Além da herança da escravidão, tivemos um racismo à moda brasileira que se estruturou. É um acúmulo de mais de 400 anos que o desenvolvimento do negro se atrasou em relação aos demais brasileiros. Como estamos vivendo num país racista, existem algumas barreiras que impedem o negro de ter acesso a uma boa educação, à uma boa universidade, bom emprego, ganhar bem para poder colocar o filho em escola particular. A diferença poderia diminuir se você zerasse a situação racial. Mas como ela persiste, só tende a aumentar.
Educação - A diferença entre brancos e negros não é apenas socioeconômica?

Munanga - Não, isso já foi desmitificado pelos institutos de pesquisa e pela academia - o próprio presidente Fernando Henrique Cardoso pesquisou e sabe que isso existe. O aspecto econômico traz o racial por trás. Por que o negro, depois de abolida a escravidão, não conseguiu ascender socialmente? Por que ele é biologicamente limitado? Não. Então a explicação sociológica ou antropológica é que ele encontra barreiras raciais que bloqueiam sua mobilidade econômica. As pessoas que fazem uma análise curta ou que não querem admitir a verdade dizem que é uma questão apenas econômica, argumentando que, para o Pelé, todas as portas estão abertas. Sabemos que não é bem assim.

Educação - Por que não vemos, no Brasil, conflitos tão declarados entre brancos e negros, como nos EUA?

Munanga - Por causa do modelo de racismo que se aplica no Brasil, que evita os conflitos abertos e bloqueia a tomada de consciência por parte das vítimas para uma mobilização social. A diferença é a seguinte: nos EUA o racismo foi institucionalizado. Além disso, é acompanhado de segregação, isto é, impõe fronteiras espaciais que determinam territórios de brancos e de negros, o que acentua a hostilidade, pois não há tolerância. Aqui existe uma tolerância até certo ponto. O Brasil foi ensinado a não dizer as coisas abertamente. O brasileiro não é educado para falar para um negro: "Olha, neste restaurante você não entra porque aqui negros são proibidos." Quando o negro chega, vão lhe dizer que naquele restaurante só entra quem faz reserva com oito horas de antecedência. A pessoa não toma consciência, não sabe que foi uma exclusão, uma discriminação, porque foi sutil. Isso evita conflitos. Aqui nós damos a impressão de vivermos juntos, mas de forma desigual. No campo de futebol, todos torcem juntos, vibram com os mesmos ídolos, mas quando saem de lá, os bairros residenciais são segregados economicamente, como dizem. Mas a base disso é racial. (APa)

A lição do terreiro

O Ilê Axé Opô Afonjá, no bairro de São Gonçalo do Retiro, em Salvador, é um dos mais importantes terreiros de candomblé do Brasil. Há quatro anos, sua sacerdotisa suprema, Mãe Stella de Oxóssi, jogou os búzios, pedindo a apreciação de Xangô para um trabalho de pesquisa que a historiadora Vanda Machado pretendia fazer junto aos 350 alunos do ensino fundamental da Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, que está instalada dentro do axé. E o orixá aprovou.

A pesquisa rendeu à historiadora uma tese de mestrado - Ilê Axé: Vivências e Invenção Pedagógica - As Crianças do Opô Afonjá, que foi lançada em livro pela editora da Universidade Federal da Bahia - e a escola ganhou um novo projeto pedagógico, que hoje está em seu quarto ano de aplicação. O projeto se tornou referência nacional na valorização da cultura afrodescendente.

"O que fizemos foi dar um melhor tratamento à história dos povos africanos. Aqui, aprende-se sobre eles na mesma medida em que se conhece a cultura dos gregos ou fenícios", explica Vanda. O Opô Afonjá foi fundado em 1910 e integra o Patrimônio Histórico Nacional. Além da escola, cujo nome é uma homenagem à sua fundadora, Mãe Aninha, possui também os espaços reservados aos cultos e construções dedicadas aos orixás, um museu, uma pequena floresta e 30 casas onde vivem famílias - algumas com até dez filhos - adeptas do candomblé.

Todos os alunos da escola - com raras exceções - são afrodescendentes. Como não é a religião quem dita a linha pedagógica, a escola não encontrou resistência junto aos pais que não são adeptos dos cultos africanos. "Eles aprenderam logo que nós não fazemos proselitismo", explica a historiadora. O compromisso é com a diversidade: nas aulas sobre democracia, além do conceito tradicional, os professores falam do episódio da Revolta dos Alfaiates e aproveitam um mito de Iansã para tratar o tema. "Logo, as crianças ficam sabendo que democracia não é um conceito apenas ocidental."

Nesse trabalho, o mais importante, revela Vanda, é a formação do professor, que precisa saber lidar com as diferenças. "O não-racismo é quando o educador vê uma criança como uma possibilidade. Se o estudante aprende pouco é porque ensinamos pouco."

A historiadora afirma que já passou da hora de sociedade e universidade tratarem melhor a cultura negra, e usa o exemplo da Bahia. "Aqui somos uma população de 80% de afrodescendentes. Nossa memória coletiva é africana." E para ilustrar a necessidade de se "(re) conhecer" essa ascendência, Vanda Machado cita Sankofa, um ideograma que mostra um pássaro que tem a cabeça voltada para trás e significa "aprender com o passado e construir suas fundações sobre ele." (APa)

Apenas o primeiro passo

É obrigação das universidades públicas deste país discutir a questão de cotas para minorias. A sociedade está pedindo uma resposta e a universidade tem que dá-la. “A indiferença em discutir esse assunto é pior do que a segregação.” A afirmação, cujo tom lembra o dos candidatos presidenciáveis apresentando suas propostas para a educação, vem de Carlos Augusto Moreira Jr., reitor da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

A UFPR ainda não decidiu se vai adotar ou não o sistema de cotas para negros, no entanto, desde o início deste ano, estuda a possibilidade em seminários e reuniões. O reitor promete que em breve sairá o resultado desses estudos e discussões. "Quando você diz não, pelo menos a outra parte tem a resposta. Mas essa indiferença, esse marasmo em tomar uma atitude é pior", avalia. Uma primeira medida contra isso já foi adotada: este ano, a UFPR abriu um cursinho pré-vestibular gratuito para alunos negros carentes.

Se no Paraná o assunto está sendo discutido, antes de qualquer tomada de decisão, no Rio de Janeiro, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e a Universidade do Norte Fluminense não tiveram tempo para refletir sobre o tema, e foram obrigadas a se adequar rapidamente à lei nº 3.524, sancionada no ano passado e que estabelece reserva de até 40% das vagas para negros nas instituições estaduais de ensino superior.

A medida já está sendo aplicada no vestibular de 2003, cuja primeira fase se encerrou no último dia 18 de agosto. A segunda parte das provas acontecem em dezembro, nos dias 2 e 15. E é aí que o sistema de cotas entra. Os candidatos que passaram para a segunda fase receberam, junto com a ficha de inscrição, um documento em que podem ou não se declararem negros para serem beneficiados com a medida.

"Foi difícil definir quem são pretos e pardos. Quando a lei foi aprovada, a Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia estudou a questão para definir quais seriam os critérios utilizados pelas universidades, mas não se chegou a nenhuma conclusão", explica Sônia Wanderley, do departamento de seleção acadêmica da Uerj. Ela completa: "São os próprios candidatos que têm que se identificar como negros.”.

A pergunta inevitável: e se um aluno branco se declarar negro e for beneficiado com as cotas? "A universidade não tem instrumentos para evitar esse tipo de fraude. Se acontecer, o que pode ser feito é um outro aluno entrar com uma representação contra o colega fraudador. Aí, a coisa vai parar na justiça", adianta Sônia.

Carlos Lessa, reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é um dos principais defensores da tese de que o sistema de cotas, tal como está sendo apresentado, é discriminatório: "Sou favorável a cotas sociais, mas descarto as cotas raciais." Ele acredita que, se o Brasil enfrentar a questão, "poderá viver em uma sociedade civilizada e sem preconceito". Lessa pondera, no entanto, que é contra as cotas, apesar de saber que "com frequência, as frações mais empobrecidas da população brasileira são de afrodescendentes, afro-brasileiros."

A polêmica também divide os candidatos à Presidência da República. No programa de Ciro Gomes e Anthony Garotinho não existe a reserva de cotas. A justificativa do candidato do PPS é que "a principal discriminação no Brasil é contra o pobre". Já Garotinho explica que o "apartheid educacional brasileiro é de natureza socioeconômica e pode ser atenuado com educação básica de boa qualidade para todos". José Serra aposta num debate mais amplo para se chegar a "um consenso" e Luiz Inácio Lula da Silva é a favor da criação de formas de acesso ao ensino superior de grupos historicamente discriminados.

Por essas e outras é que foram criados dois conselhos estaduais para pensar novas soluções para o sistema de cotas - não só para negros como também para alunos de escolas públicas - que agora está em discussão. "A universidade não foi chamada para conversar sobre o tema, coube a nós apenas implementar a lei", desabafa Sônia. Hoje, a maior preocupação das instituições é estudar formas de como manter os alunos de vagas de reserva nas salas de aula. "Partimos do pressuposto de que são pessoas carentes, que têm de trabalhar para ajudar nas despesas de casa, e sem muito tempo para estudar. Estamos buscando condições para mantê-los na universidade, com qualidade."

A presidente do Geledés e coordenadora do projeto Geração XXI, Maria Aparecida da Silva, Cidinha, acredita que essa polêmica é infrutífera. A educadora afirma que os jovens negros não precisam se sentir desconfortáveis com a medida. "É necessário dizer que o vestibular será o mesmo, as provas serão as mesmas, e as pessoas que se autoclassificarem como negras (pretas e pardas de acordo com o IBGE) terão a possibilidade de optar por terem ou não a sua prova avaliada dentro do sistema de cotas. Aqueles que não quiserem se beneficiar com o sistema de cotas podem optar pela forma de avaliação atualmente em vigor", lembra.

A opinião do professor Kabengele Munanga é semelhante, e ele cita o exemplo de sua própria família. "Sou professor universitário e meus filhos, negros, estudaram em escola particular. Não vejo por que eles - que são privilegiados por terem tido boa formação e passaram por um cursinho de boa qualidade - sejam beneficiados pelas cotas. É preciso cruzar os critérios racial e econômico", avalia.

Munanga esclarece que o sistema de cotas não compromete o nível de ensino das universidades, como muitos críticos da medida acreditam. "As pessoas não serão sorteadas. Apesar de a medida garantir uma porcentagem das vagas, os alunos pobres e negros vão passar pela seleção do vestibular, e os melhores é que vão entrar. Pode haver desnível, mas a universidade tem condições de dar uma formação complementar para esses estudantes." (APa)

Preto no branco

A prática de racismo, de acordo com a Constituição Federal, constitui crime inafiançável e imprescritível. Mas, segundo a lei 7.716, de janeiro de 1989, que define crimes resultantes de preconceito de raça ou cor, a pena para quem incitar praticar ou induzir discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional é de um a três anos de reclusão.

Em junho passado, a mãe de um aluno negro da segunda série do ensino fundamental da Escola Estadual Francisco de Assis Reys, no bairro do Ipiranga, zona sul de São Paulo, registrou queixa contra a professora Maria Erci, acusando-a de discriminação. A mãe do estudante, temendo represálias ao filho, prefere não revelar seus nomes.

O caso, que foi encaminhado pelo Ministério Público de São Paulo à Vara da Infância e Juventude, se refere a um exercício de caligrafia que a professora passou aos estudantes, com suposto conteúdo racista. A atividade contava a história de uma família "colorida" sendo assaltada por um homem preto. O pai azul reage e chama a família inteira para "bater no preto".

A diretoria da escola não se pronuncia sobre o assunto. A assessoria de imprensa da Secretaria Estadual de Educação informa que foi aberta uma sindicância para apurar o fato. "Ficou constatado que não houve ato intencional de discriminação por parte da professora. Apenas foi recomendada uma análise mais criteriosa dos textos antes de serem passados aos alunos", afirma a assessoria.

Casos como o da escola Francisco de Assis Reys não são raros. O jurista Antonio Carlos Arruda, presidente do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, revela que o órgão recebe, no mínimo, uma denúncia por mês, a maioria envolvendo instituições de ensino públicas, municipais ou estaduais.

Para Arruda, a lei 7.716 é eficiente e o número de pessoas que recorrem a ela tem crescido na mesma medida que a discussão racial. "Pais de alunos negros nos procuram para se informar sobre como agir em casos de preconceito, no entanto, muitas denúncias ainda não prosperam porque os pais temem que o filho possa ser perseguido posteriormente pelos acusados", informa Arruda. (APa).

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